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NO PRINCÍPIO
Olá, meus
anjos. Esta é a última vez que posso falar a vocês. Antes que eu seja
amordaçado e perca definitivamente o direito de me comunicar com vocês, quero
recordar algumas das minhas façanhas que fiz com vocês durante minha passagem
de milênios pela Terra.
Vocês sabem que no princípio do
mundo fui o chefe de todos vocês? Abaixo do Criador, eu podia fazer muita coisa,
inclusive belos passeios com vocês pelo universo.
Minha posição era tão
privilegiada, que cheguei a pensar em pôr o meu trono acima do Criador e tomar
o comando de todo o universo.
Como vocês aceitaram o meu
desafio e me juraram submissão incondicional, sofremos juntos aquela fragorosa
queda do Paraíso celeste.
Quando eu digo, vocês, é claro que a grande maioria aqui
é da Terra e não podia estar comigo naquela reunião, quando nem ao menos tinha
nascido.
Vocês devem estar lembrados
quando eu disse a vocês pouco antes de sermos expulsos,
A Terra vai ter um lugar muito
especial no conjunto de toda a obra. Logo terá condições de vida. Até já ouvi
falar que vamos ter uns novos bonequinhos morando lá. Ainda bem que serão de
barro e nunca vão poder competir com a gente, seja em sabedoria, beleza ou
poder.
E por falar em Terra, até ensaiei alguns passos naquelas pedras de fogo
e só não me queimei porque não sou de carne e não vim do barro. Vi que a Terra
está ficando cada vez mais bela, com suas numerosas variações de solo, fontes,
rios, grutas e mares e muito mais, que nem dá pra dizer aqui. Espero um dia
levar vocês comigo para um emocionante passeio pelo planeta encantador.
Quanto àqueles bonequinhos
desengonçados que estão para chegar, eu estou ansioso pra conhecer e sei que juntos podíamos
nos divertir muito com eles. O pior é
que ouvi dizer que quando estiverem prontos, vão se tornar como cada um
de nós, com direito à eternidade. Mas eu estou de olho. Se isso acontecer, eu
tomarei minhas providências.
Nosso lema era, Ninguém acima ou igual, todos abaixo de nós!
Nosso lema era, Ninguém acima ou igual, todos abaixo de nós!
Tudo isso foi falado pouco tempo
antes da chegada do homem à Terra. Assim como o homem, também nós tivemos
ocasião de optar por submissão ou independência do Criador. Foi então que eu e
vocês escolhemos viver por conta própria. O resultado foi a nossa expulsão da
atmosfera celeste.
Como no caso do homem, pudemos
escolher o caminho a seguir, mas não pudemos evitar as consequências da nossa
escolha. Daí para frente, tudo quanto aconteceu com as pessoas na Terra teve
alguma relação com a nossa presença e ações. Eu, na verdade, não fui onisciente,
nem onipresente, nem onipotente, mas possuía bastante sagacidade e poder de influência
sobre aqueles que chamei de bonecos desengonçados de barro. Foi assim que sempre
atuei na doce companhia de vocês.
Estou felicíssimo e grato pela
fidelidade de vocês durante todos os séculos. Nossa expulsão do Paraíso celeste
foi totalmente injusta. Certamente Ele temeu que a gente pudesse contaminar o
resto dos seus subordinados. Até que Ele tinha suas razões, pois, ficando por
lá, eu ia mesmo fazer de tudo para que isso acontecesse. A conquista está no
meu sangue, ou melhor, no meu espírito.
O Paraíso é o grande Oásis do
Universo. Agora, estávamos no calor do grande Deserto do Universo, pagando o
preço de nossa liberdade. Na verdade, não existe liberdade. Se existisse,
teríamos ficado lá com os anjos bonzinhos, que só sabem dizer Amém a tudo que
lhes mandam fazer. Onde estava o livre arbítrio, se nosso único caminho era
obedecer? Já sei, vocês estão pensando na hierarquia dos seres inteligentes.
Com toda a autoridade que essa hierarquia me dava, o que eu queria mesmo era
poder fazer tudo que quisesse, sem prestar obediência a quem quer que seja.
Diante do que acabei de dizer, fundamos
o Reino do Mundo. A hierarquia continuou existindo, mas eu era o chefe soberano
do império. Com a ajuda de todos vocês, aguardamos o tal plano de se fazer os
bonecos inteligentes e tudo fizemos para que não tomassem o lugar que nos
pertencia no Paraíso Eterno. Enquanto isso não acontecia, fomos passear pela
Terra. Como eu havia dito a vocês, ela ficava cada vez mais bela e o clima cada
vez mais ameno.
EXPULSÃO DO PARAÍSO TERRENO
Logo que fundamos o grande reino
terráqueo, Eu disse a vocês, Tenho más
notícias. A Terra ficou pronta. Bem, esta até que não é uma má notícia, pois
nosso quartel general também é por aqui. O pior é que, no final de tudo,
aqueles bonecos engraçados também ficaram prontos. Ele recebeu o nome de Barro
e ela de Varoa. Pior ainda é que receberam fôlego de eternidade igual a nós. São
uma mistura esquisita de barro e espírito. Se eles juram submissão e
fidelidade, certamente vão tomar o lugar que nos pertence por direito no
Paraíso.Não podemos perder tempo, temos que encontrar ocasião de tornar os tais
bonecos inimigos do Inventor.
Ouçam todos. Aquela ocasião
chegou depois de mais de um século. Aquele que fez o primeiro casal de bonecos
e lhes deu inteligência, resolveu também prová-los, como havia feito com a
gente no Paraíso Celestial. O teste foi muito simples, mas não foi difícil
fazer que fossem reprovados. Comecei pela varoa porque ela me parecia mais
ingênua e curiosa. Não quis me apresentar na minha própria imagem. Seria
confundido com Gabriel ou com o próprio Emanuel e minha conversa teria se
tornado sem sentido e sem lucro. Lancei mão do menos inteligente e ao mesmo
tempo o mais esperto dos animais. O homem a chamou de serpente em virtude do
seu hábito de se enroscar nos galhos das árvores ou simplesmente em volta de si
mesma em forma helicoidal.
Então, entrei no ventre da enroscada
e abri com a varoa esse diálogo.
- É verdade que o Senhor disse
pra vocês não comerem de nenhuma árvore do jardim?
- Não. Ele disse que estamos livres para comer de todas as árvores do
jardim, menos aquela que está no centro, no meio de todas as outras. Nessa não
podemos nem tocar, para que não morramos.
- Ele não disse toda a verdade. Com certeza vocês não vão morrer. Ele
disse isso porque ele sabe que, comendo dela, vocês vão abrir os olhos e vão
saber tanto quanto ele, conhecendo o bem e o mal. Ele jamais daria esse direito
a vocês nem a anjos.
A varoa viu que tudo que eu disse
era verdade. Viu que o fruto era o mais belo e o mais apetitoso de todo o pomar.
Não só o provou como o levou para que seu marido o comesse com ela. Por algumas
horas, pensei que havia frustrado para sempre a ideia de conduzir os barrentos
ao Eterno Paraíso, pois foram totalmente reprovados no teste.
Para minha grande surpresa, ouvi
quando o Senhor declarou guerra a minha estimada tortuosa, na verdade a mim
mesmo, tendo sido eu o seu ventríloquo e autor de toda a trama com a mulher.
Ele disse que haveria uma contínua inimizade entre mim e a mulher, entre o meu
fruto e o fruto dela, que o fruto dela me esmagará a cabeça, enquanto eu apenas
lhe ferirei o calcanhar. Aceitei o desafio do Divino e tudo fiz para que eu
esmagasse a cabeça do filho da Mulher e não ele a minha cabeça. Com a ajuda de
vocês assim o fiz. A luta estava apenas começando.
Assim que eu vi que o casal havia
sido expulso do Jardim, tentei o meu próximo passo. Lembro-me de que havia
outra árvore estranha no jardim. Foi chamada de Árvore da Vida. Na verdade,
simbolizava o Filho do Criador. Percebi que Adam poderia prová-la e se tornar
vivo e perdido para sempre. Mas quando eu corri para a entrada da árvore
misteriosa para facilitar o seu acesso àquele lugar, anjos celestes estavam ali
com espadas flamejantes em suas mãos e eu perdi a batalha.
PRIMEIRO HOMICÍDIO
Eu me lembro muito bem quando os
dois filhos do primeiro casal eram jovens. Eu digo os dois primeiros filhos
nascidos depois do fracassado teste de obediência. Não é demais lembrar aqui
que meio milhão de outros filhos e netos já se haviam espalhado pela terra
durante os cem anos anteriores à queda do casal.
Foi aí que os dois jovens
resolveram seguir o exemplo dos pais e apresentar sua oferta ao Soberano.
Seguindo meu propósito de vingança de anular qualquer ação visando me
substituir no Paraíso Eterno, vi ali uma boa ocasião de agir. Observei que a
oferta de Abel foi consumida sobre o altar, enquanto a de Caim lá permaneceu.
Então, sugeri a este que reagisse contra aquela injustiça e outras que pudessem
surgir adiante. Sabendo que a culpa não estava no irmão e qualquer discussão
seria inútil, ele seguiu a minha ideia e golpeou mortalmente o adorador
privilegiado.
Caindo, agora, em difícil
situação, Caim recebeu em seu corpo um sinal de seu crime e a ordem para deixar
os pais e partir para uma terra distante. Com aquele símbolo de homicida, temeu
por sua vida e clamou por misericórdia. Conseguiu a garantia de segurança para
toda a viagem, até que chegou ao seu destino e se casou com uma prima distante.
VOLTA A ADORAÇÃO
Cheguei pensar que meus planos
tinham ruído, quando o primeiro casal teve outro filho muito submisso chamado
Sete e o culto ao Divino voltou a ser praticado na Terra. Mas tive mais uma
ideia genial e sugeri aos varões, filhos e netos da inocência do primeiro
casal, que prestassem atenção à beleza e formosura varoas do pós-queda. Isso
eles fizeram muito bem e se casaram com elas, dando início a uma geração
muitíssimo forte e violenta.
O HOMEM MAIS PACIENTE
Ainda nos dias do domínio
espiritual da geração de Sete, houve um homem especial chamado Jó, que conheci
por acaso. Um dia, estando o Divino reunido com seus filhos prediletos, fiz-me
também presente e o mesmo Soberano me perguntou, Por onde você tem andado? Respondi que tinha acabado de rodear a
terra e passear por ela. Foi isso mesmo o que eu disse, rodear a terra. Eu já
sabia que a terra era redonda. Ele me perguntou ainda, Você observou o meu servo Jó, homem que ama o bem e aborrece o mal? Respondi
que é muito fácil ser bom, fiel e justo quando tudo corre bem, com uma esposa
bonita, dez filhos sadios, gozando também boa saúde e muita riqueza. Ele me deu
permissão para tirar, um por um, todas essas dádivas de seu amigo, afirmando
que Jó, no fim de tudo, continuaria o mesmo homem de sempre. Aceitei o desafio
e fui derrotado mais uma vez. Na verdade, o protegido recobrou a saúde e tudo
mais que havia perdido, a exceção dos filhos, se é que podemos dizer perdidos,
pois os filhos são eternos como nós. Ainda se tornou pai de outros dez filhos,
entre eles, 3 outras belas filhas.
NOVO COMEÇO DA RAÇA
Renovei minhas esperanças quando
um velho chamado Noé recebeu a tarefa de acabar com a raça de barro por meio de
um gigante dilúvio. Tive que esperar cem anos para ver o resultado. Mais uma
vez tive meus planos frustrados, pois o próprio Noé e família foram preservados
para salvação da espécie. Até os animais terrestres, através de seus filhotes,
foram salvos naquele barco gigante.
BABEL
Agora, passo a contar para vocês
o meu próximo plano de ação. Antes que aquela nova geração crescesse muito e a
própria Terra ainda não se tinha separado em continentes, sugeri que os
moradores se unissem e se organizassem em um governo único na forma que seria o
primeiro império mundial.
Abro aqui um parêntesis para
dizer que esse sempre foi e sempre será o meu regime predileto de governo. Um
só indivíduo mandando em todos os outros e todos abaixo de minhas ordens. Já
sei o que meus anjos estão pensando. Algumas nações independentes deram certo e
alcançaram elevados níveis de vida. Respondo dizendo que nenhum povo isolado e
sem luta armada é feliz. Perdem a autoestima e lhes falta a razão de viver. A
prova disso é que suicidam mais e sem causa aparente.
Voltando ao meu próximo plano,
minha ideia foi muito bem acatada por aquela nova geração. Resolveram formar
uma cidade sede, onde também começaram a construir uma torre de onde todos os
comandos fossem transmitidos aos súditos do grande império. Quando tudo parecia
caminhar muito bem, os chefes e operários passaram a se desentender, pois
estranhamente sua linguagem não era mais aquela de antes. Cada um falava
diferentemente do outro e as obras tiveram que cessar. A confusão foi tão
grande que a cidade ficou conhecida como Babilônia e a torre inacabada recebeu
o apelido de Babel. Os chefes recorreram ao mestre Ninrode, mas este nada pode
fazer, a não ser mandar liberar o povo para se espalhar por onde quisesse ao
redor da Terra. Fiquei a esperar ocasião para desfechar o meu próximo golpe.
SODOMA E GOMORRA
Sabendo que meu projeto de fundar
o meu sonhado império devia ser adiado por algum tempo e como o meu plano de
misturar a geração do bem com a geração do mal antes do Dilúvio havia
funcionado perfeitamente bem, prossegui em meu trabalho de enganar as pessoas e
lhes tirar o sonho de ocupar nosso lugar no Paraíso. Centrei meus maiores
esforços na violência e na frouxidão dos costumes.
As cidades gêmeas de Sodoma e
Gomorra me pareceu bastante adequada para uma espécie de plano piloto dos
limites da condição humana. Um dia, lá chegaram dois visitantes do Paraíso, os
quais, depois de passarem pela casa de Abraão na região montanhosa de Canaã,
foram recebidos pelo sobrinho do patriarca chamado ló, que os recebeu em casa.
A maldade que eu havia conseguido ali era tal, que naquela mesma noite, os
homens da cidade partiram para a casa do estrangeiro a fim de violentarem os
visitantes celestes. O ultraje foi evitado graças à intervenção dos próprios
visitantes que lhes cegaram os olhos de todos. Na manhã seguinte, Abraão olhou
de sua casa e só pode ver a densa nuvem de fumaça de enxofre, a única coisa que
sobrou das violentas cidades. O Pai da Fé, como ficou conhecido o filho de Ur,
até pensou que o sobrinho e as duas sobrinhas netas haviam também perecido na
tragédia. A bem da verdade, somente a mulher de Ló, embora tendo sido resgatada
do fogo com os demais, virou os olhos na direção da cidade e foi transformada
numa estátua de sal.
MINHAS VARAS TAMBÉM VIRAM
SERPENTES
Muitos anos se passaram depois
que aquelas bonitas cidades se tornaram, primeiro em grande depressão, e
finalmente no Mar Salgado, também conhecido como o Mar Morto.
Chegou o tempo quando um Hebreu
chamado Moisés, filho adotivo de Faraó e sua esposa rainha, resolveu libertar
seu povo de uma escravidão egípcia de quatrocentos anos. No dia quando Moisés e
seu irmão Arão foram pedir ao rei a saída de sua gente, o soberano pediu que
mostrassem algum sinal evidente de que estavam falando a verdade, quando diziam
que o Altíssimo lhes tinha enviado com aquela missão.
Foi aí que Arão lançou seu bastão
ao solo e este virou uma serpente. Cochichei nos ouvidos dos bruxos da corte e
eles fizeram o mesmo, lançando cada um seu cajado ao solo e todos viraram
serpentes. Julguei que havia conseguido uma grande vitória. Contava como certo
que os planos divinos de conduzir seu povo para uma terra de promessas estava fadado
ao fracasso. Qual não foi minha surpresa quando vi a serpente de Arão
engolindo, uma por uma, as nossas serpentes, um sinal claro de que o meu plano
é que estava ameaçado? Por pouco não revelei minha decepção, vergonha e ódio
diante de todos aqueles ilustres assistentes do palácio real.
Vocês devem estar pensando, Nosso chefe se perturbou com uma coisa tão
pequena! É que vocês não sabem o que estava por trás de cada detalhe de uma
longa operação. Meu maior temor era que aquele povo, uma vez liberto, viesse
conquistar aquela terra que manava leite e mel e ali se preparasse para receber
o prometido filho do Altíssimo, garantindo a entrada de milhões no Paraíso que
nos pertenceu um dia.
DISPUTA POR UM CORPO
Oitenta anos mais tarde, depois
que tudo havia fracassado para mim, já nas fronteiras da sonhada terra, Moisés
fez seu último discurso perante seu povo e subiu ao cume do Monte Nebo para
conversar com seu Deus, ver a terra prometida e morrer. Pena que jamais
consegui saber onde foi sepultado para que eu pudesse prestar a ele as honras
que o Altíssimo recusou. Vocês me perguntam, Por que o nosso chefe revelou tão grande interesse em resgatar o corpo
de um morto?
Respondo que não se tratava
de um morto qualquer. Como eu disse, ele não recebeu as honras que merecia. Foi
enterrado como um cão sem dono. Tivesse sido embalsamado conforme os costumes
do Egito onde nasceu e até poderia ter sido sucessor daquele trono, as coisas
teriam sido bem diferentes. Poderia até mesmo se tornado um objeto permanente
de oração no meio de seu povo. Pelo menos, esse era o meu plano.
De minha parte, fiz tudo quanto
esteve em meu alcance. Sabendo que o Arcanjo Miguel tinha feito sozinho o
enterro do grande líder, mantive com ele uma grande disputa verbal a respeito
do caso. Mas o representante celeste se manteve irredutível, sabendo que o meu
projeto idolátrico só merecia a reprovação do Altíssimo.
CHEGA O PROMETIDO
Depois da minha frustração com a
disputa pelo corpo de Moisés, passei um milênio e meio ajudando o povo de
Israel a se identificar com os deuses das nações vizinhas, no que fui muito bem
sucedido. O resultado foi o de muitas lutas internas, alcançando até mesmo o
racha da nação em dois reinos, terminando cada um em nova escravidão, o do
norte tomado pelo império assírio e o do sul pelo babilônico, duzentos anos
mais tarde. É verdade que este último teve um retorno a Canaã por concessão dos
persas, mas sem status de nação independente.
Chegou então o tempo da chegada
do prometido Messias. Foi aí que voltei a me investir pesado contra essa ideia
que não consegui apagar desde a expulsão do homem do chamado Jardim do Éden.
Depois de uma série de celebrações pelo nascimento do menino, chegaram a
Jerusalém alguns cavaleiros perguntando ao rei romano Herodes, Onde deve ter nascido o rei dos judeus? Diziam
que a estrela do Messias lhes havia aparecido e acompanhado em seu longo
caminho.
A notícia caiu como uma bomba na
corte, causando grande alvoroço. Quando o rei ficou sabendo que um tal Profeta Miqueias havia previsto Belém como berço do infante, segredei nos seus
ouvidos que a sobrevivência do menino constituía uma ameaça para a sucessão
natural de sua majestade e que alguma coisa urgente devia ser feita. A ideia do
rei até superou a minha capacidade de astúcia. Chamou os reis orientais e perguntou,
Quando foi exatamente que a estrela lhes apareceu pela primeira vez?
Diante da resposta, Herodes lhes
fez esse pedido camuflado, Sigam para
Jerusalém e quando voltarem me falem do lugar exato onde o menino se encontra,
para que eu também possa visitá-lo. Como os viajantes voltaram para sua
terra por outro caminho, na ânsia de não perder o herdeiro clandestino, o rei
mandou matar todas as crianças de dois anos ou menos ao redor de Belém.
Trinta e seis inocentes perderam
a vida. Só o menino escapou porque seus pais foram aconselhados a fugir para o
Egito antes do sangrento infanticídio. Mais uma vez tive que admitir minha
fragorosa derrota.
NO DESERTO
Trinta anos se passaram e
confesso que me mantive um pouco mais sossegado nesse período quando as coisas
corriam mais calmas e sem nenhum grande desafio.
Foi então que entrou em cena um
jovem Galileu de quase trinta anos. Era aquele mesmo menino que tentei matar
pelas mãos do monarca e acabei matando dezenas de inocentes meninos e meninas.
Esse jovem entrou no meio de muitas outras pessoas que entravam nas águas do
Rio Jordão para serem batizados pelo Profeta João Batista.
Logo que saiu do rio, foi
conduzido pelo Altíssimo para o deserto da Judeia. Vi ali uma boa oportunidade
para anular o plano de redenção da humanidade. Eu sabia que qualquer passo em
falso que conseguisse do prometido Messias seria bastante para desmoronar todo
o castelo de seus sonhos.
Sabendo ainda que a fome era uma
das maiores fraquezas e calcanhares de Aquiles do homem, esperei que findassem
os quarenta dias de jejum do jovem e lhe disse, Se tu és filho de deus, manda que essas pedras se transformem em pães. Mas
ele me rebateu de pronto, Está escrito,
Nem só de pães viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de
Deus. Logo percebi a minha falha. A resposta dele me fez lembrar que nada
conseguiria, a não ser que lançasse mão da Palavra tão amada e tão conhecida
pelo nazareno rapaz. Por isso, me
preparei para uma segunda investida.
Agora, eu o conduzi até o ponto
mais alto do grande templo e lhe disse, Se
tu és filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito...e citei
um Salmo bem apropriado para o caso. Mas ele me respondeu com outra citação da
antiga escritura, Também está escrito.
Não tentarás ao Senhor teu Deus. Eu nem sabia que uma simples presunção
significava tentar Deus.
Finalmente, levei-o até o monte
mais alto da cidade e mostrei a ele todos os reinos e a glória do mundo,
dizendo, Tudo isso te darei se,
prostrado, me adorares. Ele me respondeu com ousadia, Vai embora, Satanás, porque está escrito, Ao Senhor teu Deus adorarás e
só a ele servirás. Diante de mais aquele fracasso, desapareci e me pus a
esperar ocasião para meu próximo combate.
PORCOS POSSESSOS
Até hoje ainda não pude engolir
aquele encontro mal sucedido de um grupo de vocês com o homem de Nazaré em
Gadara. Naquele dia, vocês cometeram dois erros imperdoáveis. O primeiro,
quando vocês se prostraram perante ele e
confessaram em voz alta que ele era o Filho do Deus Altíssimo. Outro erro foi
pedirem que ele permitisse a vocês entrarem na manada dos porcos que se
precipitaram morro abaixo e se afogaram no lago, causando enorme prejuízo aos
donos e castigo dos porqueiros. Para que mais prejuízo além da humilhação que
vocês sofreram tendo que sair daquela pobre vítima há tanto tempo oprimida por
vocês? Ainda bem que vocês não eram de carne e osso como os porcos que lhes serviram
de habitação e não morreram com eles. A humilhação foi também minha. Pensar que
meus anjos se fizeram verdadeiros espíritos de porco por alguns minutos! Nunca
me esqueci também da covardia de vocês, que sendo tão numerosos, aprisionaram
um só moço, deixando tantos outros em liberdade.
O mais lamentável em todo aquele
episódio foi que, recuperando sua saúde física e mental com a fuga covarde de
vocês, o homem arrastou milhares de outras pessoas para o Cristo, testemunhando
do amigo que o curou por toda aquela populosa região.
COMO UM RAIO
Por aqueles dias, o nazareno
enviou setenta seguidores através da Galileia, com a missão de curar enfermos,
pregar seu plano da redenção e expulsar vocês das pessoas. O projeto dele deu
tão certo que eu mesmo, irado, caí como um raio sobre a terra, sem saber o que
fazer para anular o grande sucesso. Esse fato ficou tão marcado em minha
história, que, quando os setenta retornaram para dar relatório a seu mestre,
este mesmo lhes falou da minha fúria e vertiginosa descida.
DE MODO ALGUM, SENHOR
Merece também destaque o dia
quando o divino convidou seus discípulos para um tempo de descanso fora dos
limites de Canaã. Estando ali, perguntou-lhes, Que dizem as pessoas a meu respeito? Depois de ouvir diversas
respostas, fez uma segunda pergunta, E
para vocês, quem vocês acham que eu sou? Como eu já esperava, quem
respondeu foi Pedro, o mais afoito deles todos, Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. O Mestre não o elogiou, mas o
chamou de agraciado, como veículo que foi do Deus Altíssimo em sua resposta.
O Mestre lançou ali o fundamento
de sua igreja, usando as próprias palavras do pescador, Sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não
prevalecerão sobre ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus... Por
todos os séculos, ou melhor, desde o
quarto século do Cristianismo, tenho procurado distrair e impedir que muitas
pessoas leiam os acontecimentos seguintes, não vendo que os demais discípulos
receberam as mesmas chaves. Chegaram a considerar Pedro como o porteiro do Céu
e por extensão aquele que comanda o destino das chuvas sobre a terra.
Mas não posso encerrar este
capítulo da minha história sem dizer o mais importante. Depois de falar do
fundamento de sua igreja que é o Filho do Deus vivo e da chave para o seu reino
que é a fé no mesmo Cristo, ele falou de sua morte cruel e ressurreição
gloriosa. Foi ali que vi uma das minhas melhores oportunidades de anular o
plano da recuperação das pessoas. Cochichei nos ouvidos de Pedro, Faça alguma coisa pelo seu querido Mestre.
E ele gritou indignado, De modo algum
isso te acontecerá, Senhor! A reação do Messias foi imediata. Sabendo que
eu estava por trás daquela resposta de Simão, disse, Para trás de mim, Satanás. Não conheces as coisas de Deus, mas somente
aquelas que pertencem aos homens! Confesso que pensei em fazer alguma coisa
pelo desconserto de Pedro, mas preferi não me fazer visível. Mais uma vez tive
que engolir minha derrota e adiar meus planos de aniquilar a cruz.
POR 30 MOEDAS
Dois anos mais tarde, chegaram os
dias da Páscoa dos judeus. Eu notava que as coisas não estavam em nada
favoráveis ao Messias, tamanha era a frustração dos líderes religiosos diante
da pregação e dos feitos do nazareno. Quanto a mim, eu sabia que nada podia
fazer de última hora para dissuadir o divino para se retratar de suas posições
inovadoras e escapar da pena máxima.
Foi assim que resolvi dar uma
ajuda naquele processo extremo de penúria. Lembrei que só podia contar com
algum dos meus anjos de carne e osso, quer dizer, alguém do próprio grupo dos
seguidores que não tivesse identidade espiritual com seu Mestre. Era o caso do
tesoureiro Judas, um dos chamados doze apóstolos.
Cochichei nos ouvidos do traidor,
Já que o Mestre recusou o trono e não
pôde libertar vocês do jugo romano, não seria melhor embolsar um bom dinheiro
das autoridades religiosas? Ele foi até os principais sacerdotes e acertou
com eles o preço de seu trabalho, trinta moedas de prata. O traidor passou a
esperar a melhor ocasião para que o Mestre fosse preso.
Na Quinta Feira, véspera da
Páscoa, após instituir e presidir a Ceia Memorial com os apóstolos, Judas
abandonou o local e se uniu aos guardas, conduzindo-os até o Jardim do
Getsêmane, onde sabia que o Messias estaria com os demais em oração. Ao se
aproximar do Mestre, usou a senha previamente combinada, o beijo de traição.
Como eu já esperava, daí para frente, as últimas horas de vida do falso amigo
foram só tragédia. Não que eu seja advogado do divino, mas a bem da verdade,
não houve com ele nenhum castigo de vingança. Ele colheu o fruto da semente que
plantou.
CORPO ROUBADO
Como nada pude fazer para impedir
a execução do Cristo e sua morte já fazia parte da História, passei a
concentrar todos os meus esforços na questão da ressurreição. Então falei aos
ouvidos dos chefes eclesiásticos, Vocês
se lembram que ele vivia falando que voltaria à vida dentro de três dias?
A minha pergunta aguçou a
curiosidade dos mestres. Foram até o Governador e repetiram minhas palavras
como argumento de que Pilatos tinha o dever de fazer a segurança do túmulo e
que um possível furto pelos discípulos seria pior que as palavras ditas em
vida. Pilatos tomou todas as providências, enviando a guarda e selando a pedra
de entrada.
Mas o pior aconteceu. Antes do
amanhecer do terceiro dia, a pedra foi retirada da porta e o túmulo apareceu
vazio. Os guardas caíram como mortos. Tomei então a minha segunda providência.
Enquanto alguns guardas foram à cidade comunicar o estranho fato às autoridades
religiosas, voltei a falar àqueles homens, Haveria
uma melhor saída que dizer aos guardas, Espalhem que enquanto vocês dormiram,
os discípulos roubaram o corpo?
Mais uma vez fui ouvido. Os
guardas chegaram a argumentar que perderiam a vida, pois o boato implicaria em
sua própria displicência no trabalho. Disseram que ficassem tranquilos e que
eles mesmos se incumbiam de defendê-los no palácio.
Perdi assim o que parecia ser a
minha última ocasião de anular o plano da redenção humana. A ressurreição foi
comprovada por cinco vezes naquele Domingo e outras cinco nos próximos quarenta
dias. Tudo por diferentes grupos e no final, por mais de quinhentos discípulos.
Viram também quando ele subiu de volta para o seu pai. Minha surpresa não foi a
ressurreição do Messias, pois conhecia como ninguém os poderes do Criador.
Minha tristeza era não poder fazer nada para travar os planos de redenção de
criaturas inferiores a mim e vocês.
NOVAS TÁTICAS
Depois da minha mais fragorosa
derrota, a vitória do Cristo sobre a
própria morte, passei a trabalhar como nunca para impedir que os humanos
cressem tanto na morte como na vida do filho e do pai altíssimo.
Jurei então perseguição e morte
de todos os pregadores do caminho, como foram chamados no princípio e mais
tarde cristãos. Muitos foram torturados e mortos, mas a nova igreja somente
crescia mais e mais.
Mudei então minha tática e passei
a trabalhar pelo enfraquecimento interno da organização, ou seja, procurando
tornar seus adeptos cada vez menos imitadores do Cristo, o que significa maus
imitadores ou negação da doutrina e do estilo de vida do Mestre. Paradoxalmente,
o Cristianismo nominal continuou crescendo vertiginosamente bem, produzindo
frutos inesperados como a queda do Império Romano.
Voltei a jurar perseguição e
morte, mas agora promovidas pela própria igreja aos cristãos que insistiam em
pregar os ensinos e viver a vida do Messias. Cada vez mais muitos entregaram
suas vidas por não negar sua fé.
Entre os dois tipos de
cristianismo, o autêntico e o chamado nominal, já pela era pós medieval,
percebi que era o tempo de atacar a fé cristã através dos intelectuais
dominantes. Até adotei um apóstolo como patrono, Tomé com seu mote, Ver para crer. O sucesso foi
tremendamente positivo, mas jamais pude impedir totalmente o avanço da fé
cristã, o que eu já esperava.
Entre milhares de exemplos do meu
fracasso parcial, um dia em Paris, um famoso e popular filósofo exclamou, Em cinquenta anos o livro dos cristãos será
apenas uma peça de museu! Fiquei orgulhoso do meu discípulo. Mas foi grande
minha decepção, quando vi que aquele mesma casa, antes dos cinquenta anos, foi
transformada na Sociedade Bíblica da França.
Já ia me esquecendo de dizer que
Tomé jamais poderia ser considerado patrono do materialismo. Eu só fiz isso
como tática de encontrar na própria fé motivos para desmoronar a fé. Mas como
matéria de fato, o próprio Tome, ao se deparar com os sinais dos cravos e da
lança na pleura do Mestre, clamou, humilhado e submisso, Senhor meu e Deus meu!
ASSEMBLEIA DE ANJOS
Vocês se lembram que nos tempos
da pós moderna, vendo que o avanço da fé não cessava, eu reuni vocês pra ver se
tinham alguma coisa boa na cabeça. Perguntei se alguém podia oferecer alguma
estratégia para impedir o crescimento do verdadeiro Cristianismo.
Foi quando um me disse, Vamos dizer que Deus não existe. Eu
respondi, Como pregar essa ideia se o
conhecemos de perto e toda a obra do Universo desfaz essa mentira, imbecil?
Outro de vocês me disse, Então vamos
pregar que o Diabo não existe. Eu respondei, como pregar essa ideia se vocês meus discípulos dominam tantos
infelizes e o mundo está no que está, idiota? Um terceiro exclamou, Vamos pregar que o Inferno é aqui mesmo e
nada mais. Aí, eu reprovei de cara dizendo, Como pregar essa ideia se sabemos que o Santo criou o Inferno para nós
e os pecadores humanos não arrependidos, inútil? Finalmente, um de vocês
teve uma ideia brilhante. Ele disse, Então
vamos dizer aos homens que Deus existe, o Diabo existe, o Inferno existe e o
Evangelho é verdadeiro, mas que devem deixar esse assunto para mais tarde. Como
eu aplaudi! E foi assim que esse passou a ser o meu lema durante os séculos
futuros, produzindo sempre excelentes resultados. Muitos de vocês, que foram
meus anjos de barro, estão aqui hoje por causa dessa filosofia.
NOSSAS OBRAS
Como fui mesmo considerado e de fato sou o Pai
da Mentira, não posso me esquecer da minha mais possante obra de desviar
pessoas da salvação eterna. Nem me lembro quando a inventei, mas sei que
atravessou todos os milênios da História. Ela ficou conhecida como salvação
pelas obras. Embora esteja escrito desde o princípio que o homem só pode ser
salvo pela fé no Cristo e que sua obra sozinha foi declarada única e
suficiente, minha mensagem foi sempre muito bem recebida e por bilhões em cada
geração.
Não é difícil saber o motivo de
tamanho sucesso. Primeiro, porque a ideia de salvação pelas obras sempre parece
mais justa. Fazer por merecer e receber por fazer. Ainda mais em se tratando de
recompensa tão especial. Segundo, porque a ideia dava ao homem um sentido de
prestígio e autoestima. Um verdadeiro licor do ego.
Foi por essas principais razões
que muitos dos próprios líderes ensinaram e escreveram essa ideia falsa,
lançando frases de efeito como essas, Só um
presunçoso pode dizer que sua salvação tem garantia absoluta. Não sabemos se
amanhã seremos tão fieis como somos hoje. E com vários outros argumentos se
confundiram e confundiram a muitos, confundindo obras com fé e salvação com
recompensa. Eu é que amei ter lançado esse grande alçapão das almas e sem ele,
muitos de vocês não seriam hoje meus anjos companheiros e não estariam aqui
comigo, nesta noite, ou melhor, nesta sempre noite.
ÚLTIMO IMPÉRIO
Depois de passar uma porção de
séculos na prisão, não nesta aqui onde estamos todos hoje, mas acorrentado na
minha prisão moral, sem direito algum de executar o meu maior projeto,
finalmente consegui. E qual era o meu audacioso projeto? Simplesmente reunir as
nações, fazendo reviver o grande império mundial. Consegui permissão e reuni os
sete grandes da Terra e esses, por sua vez, se encarregaram de ajuntar os
menores para decidir qual deles seria o grande monarca do globo. Mas, como
governo mundial de nações nunca esteve no plano do Eterno, esse último domínio
ressuscitou de fato, mas por um tempo muitíssimo curto. Babilônia caiu e todos
nós caímos com ela para sempre.
ÚLTIMAS PALAVRAS
Agora, estou aqui com vocês nesse
lugar de tão tristes recordações para nós todos e termino minha autobiografia
com as seguintes palavras.
Não uso chifres, não tenho unhas
de fera, não cuspo fogo nem tenho nas mãos aquele garfo gigante, tudo criado
por alguns de vocês para assustar e ganhar pessoas para suas ideias. Como vocês
sabem, sempre fui uma das mais belas criaturas do universo.
Não exerço mais liderança sobre
vocês. Somos todos prisioneiros e cada um de nós agora vive pela lembrança de
seus próprios atos.
O meu grande ato foi me rebelar
contra o Criador e foi por isso que perdi a liberdade que julgava não conhecer.
O mesmo aconteceu com vocês, anjos iguais a mim. Juntos caímos no pecado, juntos
caímos do Paraíso e juntos caímos neste abismo.
Quanto a vocês, meus anjos de
barro, meus filhos adotivos, o grande ato de vocês foi ouvir meus conselhos mentirosos e não crer em quem tanto
amou vocês, quem por vocês deu a própria vida.
Copyright Eimaldo Alves Vieira