Total de visualizações de página

domingo, 1 de maio de 2016

Leia também:

Que diz Lucifer a respeito de si mesmo e suas aventuras? 
Leia esta ficção e ajude seus amigos a escapar de suas garras.

NO PRINCÍPIO
            Olá, meus anjos. Esta é a última vez que posso falar a vocês. Antes que eu seja amordaçado e perca definitivamente o direito de me comunicar com vocês, quero recordar algumas das minhas façanhas que fiz com vocês durante minha passagem de milênios pela Terra.
Vocês sabem que no princípio do mundo fui o chefe de todos vocês? Abaixo do Criador, eu podia fazer muita coisa, inclusive belos passeios com vocês pelo universo.
Minha posição era tão privilegiada, que cheguei a pensar em pôr o meu trono acima do Criador e tomar o comando de todo o universo.
Como vocês aceitaram o meu desafio e me juraram submissão incondicional, sofremos juntos aquela fragorosa queda do Paraíso celeste.
Quando eu digo, vocês, é claro que a grande maioria aqui é da Terra e não podia estar comigo naquela reunião, quando nem ao menos tinha nascido.


Vocês devem estar lembrados quando eu disse a vocês pouco antes de sermos  expulsos,  A Terra vai ter um lugar muito especial no conjunto de toda a obra. Logo terá condições de vida. Até já ouvi falar que vamos ter uns novos bonequinhos morando lá. Ainda bem que serão de barro e nunca vão poder competir com a gente, seja em sabedoria, beleza ou poder.
E por falar em Terra, até ensaiei alguns passos naquelas pedras de fogo e só não me queimei porque não sou de carne e não vim do barro. Vi que a Terra está ficando cada vez mais bela, com suas numerosas variações de solo, fontes, rios, grutas e mares e muito mais, que nem dá pra dizer aqui. Espero um dia levar vocês comigo para um emocionante passeio pelo planeta encantador.

Quanto àqueles bonequinhos desengonçados que estão para chegar, eu estou ansioso pra conhecer e sei que juntos podíamos nos divertir muito com eles.  O pior é que ouvi dizer que quando estiverem prontos, vão se tornar como cada um de nós, com direito à eternidade. Mas eu estou de olho. Se isso acontecer, eu tomarei minhas providências.
Nosso lema era,  Ninguém acima ou igual, todos abaixo de nós!
Tudo isso foi falado pouco tempo antes da chegada do homem à Terra. Assim como o homem, também nós tivemos ocasião de optar por submissão ou independência do Criador. Foi então que eu e vocês escolhemos viver por conta própria. O resultado foi a nossa expulsão da atmosfera celeste.

Como no caso do homem, pudemos escolher o caminho a seguir, mas não pudemos evitar as consequências da nossa escolha. Daí para frente, tudo quanto aconteceu com as pessoas na Terra teve alguma relação com a nossa presença e ações. Eu, na verdade, não fui onisciente, nem onipresente, nem onipotente, mas possuía bastante sagacidade e poder de influência sobre aqueles que chamei de bonecos desengonçados de barro. Foi assim que sempre atuei na doce companhia de vocês.

Estou felicíssimo e grato pela fidelidade de vocês durante todos os séculos. Nossa expulsão do Paraíso celeste foi totalmente injusta. Certamente Ele temeu que a gente pudesse contaminar o resto dos seus subordinados. Até que Ele tinha suas razões, pois, ficando por lá, eu ia mesmo fazer de tudo para que isso acontecesse. A conquista está no meu sangue, ou melhor, no meu espírito.
O Paraíso é o grande Oásis do Universo. Agora, estávamos no calor do grande Deserto do Universo, pagando o preço de nossa liberdade. Na verdade, não existe liberdade. Se existisse, teríamos ficado lá com os anjos bonzinhos, que só sabem dizer Amém a tudo que lhes mandam fazer. Onde estava o livre arbítrio, se nosso único caminho era obedecer? Já sei, vocês estão pensando na hierarquia dos seres inteligentes. Com toda a autoridade que essa hierarquia me dava, o que eu queria mesmo era poder fazer tudo que quisesse, sem prestar obediência a quem quer que seja.

Diante do que acabei de dizer, fundamos o Reino do Mundo. A hierarquia continuou existindo, mas eu era o chefe soberano do império. Com a ajuda de todos vocês, aguardamos o tal plano de se fazer os bonecos inteligentes e tudo fizemos para que não tomassem o lugar que nos pertencia no Paraíso Eterno. Enquanto isso não acontecia, fomos passear pela Terra. Como eu havia dito a vocês, ela ficava cada vez mais bela e o clima cada vez mais ameno.

EXPULSÃO DO PARAÍSO TERRENO
Logo que fundamos o grande reino terráqueo, Eu disse a vocês, Tenho más notícias. A Terra ficou pronta. Bem, esta até que não é uma má notícia, pois nosso quartel general também é por aqui. O pior é que, no final de tudo, aqueles bonecos engraçados também ficaram prontos. Ele recebeu o nome de Barro e ela de Varoa. Pior ainda é que receberam fôlego de eternidade igual a nós. São uma mistura esquisita de barro e espírito. Se eles juram submissão e fidelidade, certamente vão tomar o lugar que nos pertence por direito no Paraíso.Não podemos perder tempo, temos que encontrar ocasião de tornar os tais bonecos inimigos do Inventor.
Ouçam todos. Aquela ocasião chegou depois de mais de um século. Aquele que fez o primeiro casal de bonecos e lhes deu inteligência, resolveu também prová-los, como havia feito com a gente no Paraíso Celestial. O teste foi muito simples, mas não foi difícil fazer que fossem reprovados. Comecei pela varoa porque ela me parecia mais ingênua e curiosa. Não quis me apresentar na minha própria imagem. Seria confundido com Gabriel ou com o próprio Emanuel e minha conversa teria se tornado sem sentido e sem lucro. Lancei mão do menos inteligente e ao mesmo tempo o mais esperto dos animais. O homem a chamou de serpente em virtude do seu hábito de se enroscar nos galhos das árvores ou simplesmente em volta de si mesma em forma helicoidal.
Então, entrei no ventre da enroscada e abri com a varoa esse diálogo.
 - É verdade que o Senhor disse pra vocês não comerem de nenhuma árvore do jardim?
- Não. Ele disse que estamos livres para comer de todas as árvores do jardim, menos aquela que está no centro, no meio de todas as outras. Nessa não podemos nem tocar, para que não morramos.
- Ele não disse toda a verdade. Com certeza vocês não vão morrer. Ele disse isso porque ele sabe que, comendo dela, vocês vão abrir os olhos e vão saber tanto quanto ele, conhecendo o bem e o mal. Ele jamais daria esse direito a vocês nem a anjos.
A varoa viu que tudo que eu disse era verdade. Viu que o fruto era o mais belo e o mais apetitoso de todo o pomar. Não só o provou como o levou para que seu marido o comesse com ela. Por algumas horas, pensei que havia frustrado para sempre a ideia de conduzir os barrentos ao Eterno Paraíso, pois foram totalmente reprovados no teste.
Para minha grande surpresa, ouvi quando o Senhor declarou guerra a minha estimada tortuosa, na verdade a mim mesmo, tendo sido eu o seu ventríloquo e autor de toda a trama com a mulher. Ele disse que haveria uma contínua inimizade entre mim e a mulher, entre o meu fruto e o fruto dela, que o fruto dela me esmagará a cabeça, enquanto eu apenas lhe ferirei o calcanhar. Aceitei o desafio do Divino e tudo fiz para que eu esmagasse a cabeça do filho da Mulher e não ele a minha cabeça. Com a ajuda de vocês assim o fiz. A luta estava apenas começando.
Assim que eu vi que o casal havia sido expulso do Jardim, tentei o meu próximo passo. Lembro-me de que havia outra árvore estranha no jardim. Foi chamada de Árvore da Vida. Na verdade, simbolizava o Filho do Criador. Percebi que Adam poderia prová-la e se tornar vivo e perdido para sempre. Mas quando eu corri para a entrada da árvore misteriosa para facilitar o seu acesso àquele lugar, anjos celestes estavam ali com espadas flamejantes em suas mãos e eu perdi a batalha.

PRIMEIRO HOMICÍDIO
Eu me lembro muito bem quando os dois filhos do primeiro casal eram jovens. Eu digo os dois primeiros filhos nascidos depois do fracassado teste de obediência. Não é demais lembrar aqui que meio milhão de outros filhos e netos já se haviam espalhado pela terra durante os cem anos anteriores à queda do casal.
Foi aí que os dois jovens resolveram seguir o exemplo dos pais e apresentar sua oferta ao Soberano. Seguindo meu propósito de vingança de anular qualquer ação visando me substituir no Paraíso Eterno, vi ali uma boa ocasião de agir. Observei que a oferta de Abel foi consumida sobre o altar, enquanto a de Caim lá permaneceu. Então, sugeri a este que reagisse contra aquela injustiça e outras que pudessem surgir adiante. Sabendo que a culpa não estava no irmão e qualquer discussão seria inútil, ele seguiu a minha ideia e golpeou mortalmente o adorador privilegiado.
Caindo, agora, em difícil situação, Caim recebeu em seu corpo um sinal de seu crime e a ordem para deixar os pais e partir para uma terra distante. Com aquele símbolo de homicida, temeu por sua vida e clamou por misericórdia. Conseguiu a garantia de segurança para toda a viagem, até que chegou ao seu destino e se casou com uma prima distante.

VOLTA A ADORAÇÃO
Cheguei pensar que meus planos tinham ruído, quando o primeiro casal teve outro filho muito submisso chamado Sete e o culto ao Divino voltou a ser praticado na Terra. Mas tive mais uma ideia genial e sugeri aos varões, filhos e netos da inocência do primeiro casal, que prestassem atenção à beleza e formosura varoas do pós-queda. Isso eles fizeram muito bem e se casaram com elas, dando início a uma geração muitíssimo forte e violenta.

O HOMEM MAIS PACIENTE
Ainda nos dias do domínio espiritual da geração de Sete, houve um homem especial chamado Jó, que conheci por acaso. Um dia, estando o Divino reunido com seus filhos prediletos, fiz-me também presente e o mesmo Soberano me perguntou, Por onde você tem andado? Respondi que tinha acabado de rodear a terra e passear por ela. Foi isso mesmo o que eu disse, rodear a terra. Eu já sabia que a terra era redonda. Ele me perguntou ainda, Você observou o meu servo Jó, homem que ama o bem e aborrece o mal? Respondi que é muito fácil ser bom, fiel e justo quando tudo corre bem, com uma esposa bonita, dez filhos sadios, gozando também boa saúde e muita riqueza. Ele me deu permissão para tirar, um por um, todas essas dádivas de seu amigo, afirmando que Jó, no fim de tudo, continuaria o mesmo homem de sempre. Aceitei o desafio e fui derrotado mais uma vez. Na verdade, o protegido recobrou a saúde e tudo mais que havia perdido, a exceção dos filhos, se é que podemos dizer perdidos, pois os filhos são eternos como nós. Ainda se tornou pai de outros dez filhos, entre eles, 3 outras belas filhas.

NOVO COMEÇO DA RAÇA
Renovei minhas esperanças quando um velho chamado Noé recebeu a tarefa de acabar com a raça de barro por meio de um gigante dilúvio. Tive que esperar cem anos para ver o resultado. Mais uma vez tive meus planos frustrados, pois o próprio Noé e família foram preservados para salvação da espécie. Até os animais terrestres, através de seus filhotes, foram salvos naquele barco gigante.

BABEL
Agora, passo a contar para vocês o meu próximo plano de ação. Antes que aquela nova geração crescesse muito e a própria Terra ainda não se tinha separado em continentes, sugeri que os moradores se unissem e se organizassem em um governo único na forma que seria o primeiro império mundial.
Abro aqui um parêntesis para dizer que esse sempre foi e sempre será o meu regime predileto de governo. Um só indivíduo mandando em todos os outros e todos abaixo de minhas ordens. Já sei o que meus anjos estão pensando. Algumas nações independentes deram certo e alcançaram elevados níveis de vida. Respondo dizendo que nenhum povo isolado e sem luta armada é feliz. Perdem a autoestima e lhes falta a razão de viver. A prova disso é que suicidam mais e sem causa aparente.
Voltando ao meu próximo plano, minha ideia foi muito bem acatada por aquela nova geração. Resolveram formar uma cidade sede, onde também começaram a construir uma torre de onde todos os comandos fossem transmitidos aos súditos do grande império. Quando tudo parecia caminhar muito bem, os chefes e operários passaram a se desentender, pois estranhamente sua linguagem não era mais aquela de antes. Cada um falava diferentemente do outro e as obras tiveram que cessar. A confusão foi tão grande que a cidade ficou conhecida como Babilônia e a torre inacabada recebeu o apelido de Babel. Os chefes recorreram ao mestre Ninrode, mas este nada pode fazer, a não ser mandar liberar o povo para se espalhar por onde quisesse ao redor da Terra. Fiquei a esperar ocasião para desfechar o meu próximo golpe.

SODOMA E GOMORRA
Sabendo que meu projeto de fundar o meu sonhado império devia ser adiado por algum tempo e como o meu plano de misturar a geração do bem com a geração do mal antes do Dilúvio havia funcionado perfeitamente bem, prossegui em meu trabalho de enganar as pessoas e lhes tirar o sonho de ocupar nosso lugar no Paraíso. Centrei meus maiores esforços na violência e na frouxidão dos costumes.
As cidades gêmeas de Sodoma e Gomorra me pareceu bastante adequada para uma espécie de plano piloto dos limites da condição humana. Um dia, lá chegaram dois visitantes do Paraíso, os quais, depois de passarem pela casa de Abraão na região montanhosa de Canaã, foram recebidos pelo sobrinho do patriarca chamado ló, que os recebeu em casa. A maldade que eu havia conseguido ali era tal, que naquela mesma noite, os homens da cidade partiram para a casa do estrangeiro a fim de violentarem os visitantes celestes. O ultraje foi evitado graças à intervenção dos próprios visitantes que lhes cegaram os olhos de todos. Na manhã seguinte, Abraão olhou de sua casa e só pode ver a densa nuvem de fumaça de enxofre, a única coisa que sobrou das violentas cidades. O Pai da Fé, como ficou conhecido o filho de Ur, até pensou que o sobrinho e as duas sobrinhas netas haviam também perecido na tragédia. A bem da verdade, somente a mulher de Ló, embora tendo sido resgatada do fogo com os demais, virou os olhos na direção da cidade e foi transformada numa estátua de sal.

MINHAS VARAS TAMBÉM VIRAM SERPENTES
Muitos anos se passaram depois que aquelas bonitas cidades se tornaram, primeiro em grande depressão, e finalmente no Mar Salgado, também conhecido como o Mar Morto.
Chegou o tempo quando um Hebreu chamado Moisés, filho adotivo de Faraó e sua esposa rainha, resolveu libertar seu povo de uma escravidão egípcia de quatrocentos anos. No dia quando Moisés e seu irmão Arão foram pedir ao rei a saída de sua gente, o soberano pediu que mostrassem algum sinal evidente de que estavam falando a verdade, quando diziam que o Altíssimo lhes tinha enviado com aquela missão.
Foi aí que Arão lançou seu bastão ao solo e este virou uma serpente. Cochichei nos ouvidos dos bruxos da corte e eles fizeram o mesmo, lançando cada um seu cajado ao solo e todos viraram serpentes. Julguei que havia conseguido uma grande vitória. Contava como certo que os planos divinos de conduzir seu povo para uma terra de promessas estava fadado ao fracasso. Qual não foi minha surpresa quando vi a serpente de Arão engolindo, uma por uma, as nossas serpentes, um sinal claro de que o meu plano é que estava ameaçado? Por pouco não revelei minha decepção, vergonha e ódio diante de todos aqueles ilustres assistentes do palácio real.
Vocês devem estar pensando, Nosso chefe se perturbou com uma coisa tão pequena! É que vocês não sabem o que estava por trás de cada detalhe de uma longa operação. Meu maior temor era que aquele povo, uma vez liberto, viesse conquistar aquela terra que manava leite e mel e ali se preparasse para receber o prometido filho do Altíssimo, garantindo a entrada de milhões no Paraíso que nos pertenceu um dia.

DISPUTA POR UM CORPO
Oitenta anos mais tarde, depois que tudo havia fracassado para mim, já nas fronteiras da sonhada terra, Moisés fez seu último discurso perante seu povo e subiu ao cume do Monte Nebo para conversar com seu Deus, ver a terra prometida e morrer. Pena que jamais consegui saber onde foi sepultado para que eu pudesse prestar a ele as honras que o Altíssimo recusou. Vocês me perguntam, Por que o nosso chefe revelou tão grande interesse em resgatar o corpo de um morto?
 Respondo que não se tratava de um morto qualquer. Como eu disse, ele não recebeu as honras que merecia. Foi enterrado como um cão sem dono. Tivesse sido embalsamado conforme os costumes do Egito onde nasceu e até poderia ter sido sucessor daquele trono, as coisas teriam sido bem diferentes. Poderia até mesmo se tornado um objeto permanente de oração no meio de seu povo. Pelo menos, esse era o meu plano.
De minha parte, fiz tudo quanto esteve em meu alcance. Sabendo que o Arcanjo Miguel tinha feito sozinho o enterro do grande líder, mantive com ele uma grande disputa verbal a respeito do caso. Mas o representante celeste se manteve irredutível, sabendo que o meu projeto idolátrico só merecia a reprovação do Altíssimo.

CHEGA O PROMETIDO
Depois da minha frustração com a disputa pelo corpo de Moisés, passei um milênio e meio ajudando o povo de Israel a se identificar com os deuses das nações vizinhas, no que fui muito bem sucedido. O resultado foi o de muitas lutas internas, alcançando até mesmo o racha da nação em dois reinos, terminando cada um em nova escravidão, o do norte tomado pelo império assírio e o do sul pelo babilônico, duzentos anos mais tarde. É verdade que este último teve um retorno a Canaã por concessão dos persas, mas sem status de nação independente. 
Chegou então o tempo da chegada do prometido Messias. Foi aí que voltei a me investir pesado contra essa ideia que não consegui apagar desde a expulsão do homem do chamado Jardim do Éden. Depois de uma série de celebrações pelo nascimento do menino, chegaram a Jerusalém alguns cavaleiros perguntando ao rei romano Herodes, Onde deve ter nascido o rei dos judeus? Diziam que a estrela do Messias lhes havia aparecido e acompanhado em seu longo caminho.
A notícia caiu como uma bomba na corte, causando grande alvoroço. Quando o rei ficou sabendo que um tal Profeta Miqueias havia previsto Belém como berço do infante, segredei nos seus ouvidos que a sobrevivência do menino constituía uma ameaça para a sucessão natural de sua majestade e que alguma coisa urgente devia ser feita. A ideia do rei até superou a minha capacidade de astúcia. Chamou os reis orientais e perguntou, Quando foi exatamente que a estrela lhes apareceu pela primeira vez?
Diante da resposta, Herodes lhes fez esse pedido camuflado, Sigam para Jerusalém e quando voltarem me falem do lugar exato onde o menino se encontra, para que eu também possa visitá-lo. Como os viajantes voltaram para sua terra por outro caminho, na ânsia de não perder o herdeiro clandestino, o rei mandou matar todas as crianças de dois anos ou menos ao redor de Belém.
Trinta e seis inocentes perderam a vida. Só o menino escapou porque seus pais foram aconselhados a fugir para o Egito antes do sangrento infanticídio. Mais uma vez tive que admitir minha fragorosa derrota.

NO DESERTO
Trinta anos se passaram e confesso que me mantive um pouco mais sossegado nesse período quando as coisas corriam mais calmas e sem nenhum grande desafio.
Foi então que entrou em cena um jovem Galileu de quase trinta anos. Era aquele mesmo menino que tentei matar pelas mãos do monarca e acabei matando dezenas de inocentes meninos e meninas. Esse jovem entrou no meio de muitas outras pessoas que entravam nas águas do Rio Jordão para serem batizados pelo Profeta João Batista.
Logo que saiu do rio, foi conduzido pelo Altíssimo para o deserto da Judeia. Vi ali uma boa oportunidade para anular o plano de redenção da humanidade. Eu sabia que qualquer passo em falso que conseguisse do prometido Messias seria bastante para desmoronar todo o castelo de seus sonhos.
Sabendo ainda que a fome era uma das maiores fraquezas e calcanhares de Aquiles do homem, esperei que findassem os quarenta dias de jejum do jovem e lhe disse, Se tu és filho de deus, manda que essas pedras se transformem em pães. Mas ele me rebateu de pronto, Está escrito, Nem só de pães viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus. Logo percebi a minha falha. A resposta dele me fez lembrar que nada conseguiria, a não ser que lançasse mão da Palavra tão amada e tão conhecida pelo nazareno rapaz. Por isso, me preparei para uma segunda investida.
Agora, eu o conduzi até o ponto mais alto do grande templo e lhe disse, Se tu és filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito...e citei um Salmo bem apropriado para o caso. Mas ele me respondeu com outra citação da antiga escritura, Também está escrito. Não tentarás ao Senhor teu Deus. Eu nem sabia que uma simples presunção significava tentar Deus.
Finalmente, levei-o até o monte mais alto da cidade e mostrei a ele todos os reinos e a glória do mundo, dizendo, Tudo isso te darei se, prostrado, me adorares. Ele me respondeu com ousadia, Vai embora, Satanás, porque está escrito, Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele servirás. Diante de mais aquele fracasso, desapareci e me pus a esperar ocasião para meu próximo combate.

PORCOS POSSESSOS
Até hoje ainda não pude engolir aquele encontro mal sucedido de um grupo de vocês com o homem de Nazaré em Gadara. Naquele dia, vocês cometeram dois erros imperdoáveis. O primeiro, quando vocês se prostraram  perante ele e confessaram em voz alta que ele era o Filho do Deus Altíssimo. Outro erro foi pedirem que ele permitisse a vocês entrarem na manada dos porcos que se precipitaram morro abaixo e se afogaram no lago, causando enorme prejuízo aos donos e castigo dos porqueiros. Para que mais prejuízo além da humilhação que vocês sofreram tendo que sair daquela pobre vítima há tanto tempo oprimida por vocês? Ainda bem que vocês não eram de carne e osso como os porcos que lhes serviram de habitação e não morreram com eles. A humilhação foi também minha. Pensar que meus anjos se fizeram verdadeiros espíritos de porco por alguns minutos! Nunca me esqueci também da covardia de vocês, que sendo tão numerosos, aprisionaram um só moço, deixando tantos outros em liberdade.
O mais lamentável em todo aquele episódio foi que, recuperando sua saúde física e mental com a fuga covarde de vocês, o homem arrastou milhares de outras pessoas para o Cristo, testemunhando do amigo que o curou por toda aquela populosa região.

COMO UM RAIO
Por aqueles dias, o nazareno enviou setenta seguidores através da Galileia, com a missão de curar enfermos, pregar seu plano da redenção e expulsar vocês das pessoas. O projeto dele deu tão certo que eu mesmo, irado, caí como um raio sobre a terra, sem saber o que fazer para anular o grande sucesso. Esse fato ficou tão marcado em minha história, que, quando os setenta retornaram para dar relatório a seu mestre, este mesmo lhes falou da minha fúria e vertiginosa descida.

DE MODO ALGUM, SENHOR
Merece também destaque o dia quando o divino convidou seus discípulos para um tempo de descanso fora dos limites de Canaã. Estando ali, perguntou-lhes, Que dizem as pessoas a meu respeito? Depois de ouvir diversas respostas, fez uma segunda pergunta, E para vocês, quem vocês acham que eu sou? Como eu já esperava, quem respondeu foi Pedro, o mais afoito deles todos, Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. O Mestre não o elogiou, mas o chamou de agraciado, como veículo que foi do Deus Altíssimo em sua resposta.
O Mestre lançou ali o fundamento de sua igreja, usando as próprias palavras do pescador, Sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus... Por todos os séculos, ou melhor,  desde o quarto século do Cristianismo, tenho procurado distrair e impedir que muitas pessoas leiam os acontecimentos seguintes, não vendo que os demais discípulos receberam as mesmas chaves. Chegaram a considerar Pedro como o porteiro do Céu e por extensão aquele que comanda o destino das chuvas sobre a terra.
Mas não posso encerrar este capítulo da minha história sem dizer o mais importante. Depois de falar do fundamento de sua igreja que é o Filho do Deus vivo e da chave para o seu reino que é a fé no mesmo Cristo, ele falou de sua morte cruel e ressurreição gloriosa. Foi ali que vi uma das minhas melhores oportunidades de anular o plano da recuperação das pessoas. Cochichei nos ouvidos de Pedro, Faça alguma coisa pelo seu querido Mestre. E ele gritou indignado, De modo algum isso te acontecerá, Senhor! A reação do Messias foi imediata. Sabendo que eu estava por trás daquela resposta de Simão, disse, Para trás de mim, Satanás. Não conheces as coisas de Deus, mas somente aquelas que pertencem aos homens! Confesso que pensei em fazer alguma coisa pelo desconserto de Pedro, mas preferi não me fazer visível. Mais uma vez tive que engolir minha derrota e adiar meus planos de aniquilar a cruz.

POR 30 MOEDAS
Dois anos mais tarde, chegaram os dias da Páscoa dos judeus. Eu notava que as coisas não estavam em nada favoráveis ao Messias, tamanha era a frustração dos líderes religiosos diante da pregação e dos feitos do nazareno. Quanto a mim, eu sabia que nada podia fazer de última hora para dissuadir o divino para se retratar de suas posições inovadoras e escapar da pena máxima.
Foi assim que resolvi dar uma ajuda naquele processo extremo de penúria. Lembrei que só podia contar com algum dos meus anjos de carne e osso, quer dizer, alguém do próprio grupo dos seguidores que não tivesse identidade espiritual com seu Mestre. Era o caso do tesoureiro Judas, um dos chamados doze apóstolos.
Cochichei nos ouvidos do traidor, Já que o Mestre recusou o trono e não pôde libertar vocês do jugo romano, não seria melhor embolsar um bom dinheiro das autoridades religiosas? Ele foi até os principais sacerdotes e acertou com eles o preço de seu trabalho, trinta moedas de prata. O traidor passou a esperar a melhor ocasião para que o Mestre fosse preso.
Na Quinta Feira, véspera da Páscoa, após instituir e presidir a Ceia Memorial com os apóstolos, Judas abandonou o local e se uniu aos guardas, conduzindo-os até o Jardim do Getsêmane, onde sabia que o Messias estaria com os demais em oração. Ao se aproximar do Mestre, usou a senha previamente combinada, o beijo de traição. Como eu já esperava, daí para frente, as últimas horas de vida do falso amigo foram só tragédia. Não que eu seja advogado do divino, mas a bem da verdade, não houve com ele nenhum castigo de vingança. Ele colheu o fruto da semente que plantou.

CORPO ROUBADO
Como nada pude fazer para impedir a execução do Cristo e sua morte já fazia parte da História, passei a concentrar todos os meus esforços na questão da ressurreição. Então falei aos ouvidos dos chefes eclesiásticos, Vocês se lembram que ele vivia falando que voltaria à vida dentro de três dias?
A minha pergunta aguçou a curiosidade dos mestres. Foram até o Governador e repetiram minhas palavras como argumento de que Pilatos tinha o dever de fazer a segurança do túmulo e que um possível furto pelos discípulos seria pior que as palavras ditas em vida. Pilatos tomou todas as providências, enviando a guarda e selando a pedra de entrada.
Mas o pior aconteceu. Antes do amanhecer do terceiro dia, a pedra foi retirada da porta e o túmulo apareceu vazio. Os guardas caíram como mortos. Tomei então a minha segunda providência. Enquanto alguns guardas foram à cidade comunicar o estranho fato às autoridades religiosas, voltei a falar àqueles homens, Haveria uma melhor saída que dizer aos guardas, Espalhem que enquanto vocês dormiram, os discípulos roubaram o corpo?
Mais uma vez fui ouvido. Os guardas chegaram a argumentar que perderiam a vida, pois o boato implicaria em sua própria displicência no trabalho. Disseram que ficassem tranquilos e que eles mesmos se incumbiam de defendê-los no palácio.
Perdi assim o que parecia ser a minha última ocasião de anular o plano da redenção humana. A ressurreição foi comprovada por cinco vezes naquele Domingo e outras cinco nos próximos quarenta dias. Tudo por diferentes grupos e no final, por mais de quinhentos discípulos. Viram também quando ele subiu de volta para o seu pai. Minha surpresa não foi a ressurreição do Messias, pois conhecia como ninguém os poderes do Criador. Minha tristeza era não poder fazer nada para travar os planos de redenção de criaturas inferiores a mim e vocês.

NOVAS TÁTICAS
Depois da minha mais fragorosa derrota,  a vitória do Cristo sobre a própria morte, passei a trabalhar como nunca para impedir que os humanos cressem tanto na morte como na vida do filho e do pai altíssimo.
Jurei então perseguição e morte de todos os pregadores do caminho, como foram chamados no princípio e mais tarde cristãos. Muitos foram torturados e mortos, mas a nova igreja somente crescia mais e mais.
Mudei então minha tática e passei a trabalhar pelo enfraquecimento interno da organização, ou seja, procurando tornar seus adeptos cada vez menos imitadores do Cristo, o que significa maus imitadores ou negação da doutrina e do estilo de vida do Mestre. Paradoxalmente, o Cristianismo nominal continuou crescendo vertiginosamente bem, produzindo frutos inesperados como a queda do Império Romano.
Voltei a jurar perseguição e morte, mas agora promovidas pela própria igreja aos cristãos que insistiam em pregar os ensinos e viver a vida do Messias. Cada vez mais muitos entregaram suas vidas por não negar sua fé.
Entre os dois tipos de cristianismo, o autêntico e o chamado nominal, já pela era pós medieval, percebi que era o tempo de atacar a fé cristã através dos intelectuais dominantes. Até adotei um apóstolo como patrono, Tomé com seu mote, Ver para crer. O sucesso foi tremendamente positivo, mas jamais pude impedir totalmente o avanço da fé cristã, o que eu já esperava.
Entre milhares de exemplos do meu fracasso parcial, um dia em Paris, um famoso e popular filósofo exclamou, Em cinquenta anos o livro dos cristãos será apenas uma peça de museu! Fiquei orgulhoso do meu discípulo. Mas foi grande minha decepção, quando vi que aquele mesma casa, antes dos cinquenta anos, foi transformada na Sociedade Bíblica da França.
Já ia me esquecendo de dizer que Tomé jamais poderia ser considerado patrono do materialismo. Eu só fiz isso como tática de encontrar na própria fé motivos para desmoronar a fé. Mas como matéria de fato, o próprio Tome, ao se deparar com os sinais dos cravos e da lança na pleura do Mestre, clamou, humilhado e submisso, Senhor meu e Deus meu!

ASSEMBLEIA DE ANJOS
Vocês se lembram que nos tempos da pós moderna, vendo que o avanço da fé não cessava, eu reuni vocês pra ver se tinham alguma coisa boa na cabeça. Perguntei se alguém podia oferecer alguma estratégia para impedir o crescimento do verdadeiro Cristianismo.
Foi quando um me disse, Vamos dizer que Deus não existe. Eu respondi, Como pregar essa ideia se o conhecemos de perto e toda a obra do Universo desfaz essa mentira, imbecil? Outro de vocês me disse, Então vamos pregar que o Diabo não existe. Eu respondei, como pregar essa ideia se vocês meus discípulos dominam tantos infelizes e o mundo está no que está, idiota? Um terceiro exclamou, Vamos pregar que o Inferno é aqui mesmo e nada mais. Aí, eu reprovei de cara dizendo, Como pregar essa ideia se sabemos que o Santo criou o Inferno para nós e os pecadores humanos não arrependidos, inútil? Finalmente, um de vocês teve uma ideia brilhante. Ele disse, Então vamos dizer aos homens que Deus existe, o Diabo existe, o Inferno existe e o Evangelho é verdadeiro, mas que devem deixar esse assunto para mais tarde. Como eu  aplaudi! E foi assim que esse passou a ser o meu lema durante os séculos futuros, produzindo sempre excelentes resultados. Muitos de vocês, que foram meus anjos de barro, estão aqui hoje por causa dessa filosofia.

NOSSAS OBRAS
 Como fui mesmo considerado e de fato sou o Pai da Mentira, não posso me esquecer da minha mais possante obra de desviar pessoas da salvação eterna. Nem me lembro quando a inventei, mas sei que atravessou todos os milênios da História. Ela ficou conhecida como salvação pelas obras. Embora esteja escrito desde o princípio que o homem só pode ser salvo pela fé no Cristo e que sua obra sozinha foi declarada única e suficiente, minha mensagem foi sempre muito bem recebida e por bilhões em cada geração.
Não é difícil saber o motivo de tamanho sucesso. Primeiro, porque a ideia de salvação pelas obras sempre parece mais justa. Fazer por merecer e receber por fazer. Ainda mais em se tratando de recompensa tão especial. Segundo, porque a ideia dava ao homem um sentido de prestígio e autoestima. Um verdadeiro licor do ego.
Foi por essas principais razões que muitos dos próprios líderes ensinaram e escreveram essa ideia falsa, lançando frases de efeito como essas,   Só um presunçoso pode dizer que sua salvação tem garantia absoluta. Não sabemos se amanhã seremos tão fieis como somos hoje. E com vários outros argumentos se confundiram e confundiram a muitos, confundindo obras com fé e salvação com recompensa. Eu é que amei ter lançado esse grande alçapão das almas e sem ele, muitos de vocês não seriam hoje meus anjos companheiros e não estariam aqui comigo, nesta noite, ou melhor, nesta sempre noite.

ÚLTIMO IMPÉRIO
Depois de passar uma porção de séculos na prisão, não nesta aqui onde estamos todos hoje, mas acorrentado na minha prisão moral, sem direito algum de executar o meu maior projeto, finalmente consegui. E qual era o meu audacioso projeto? Simplesmente reunir as nações, fazendo reviver o grande império mundial. Consegui permissão e reuni os sete grandes da Terra e esses, por sua vez, se encarregaram de ajuntar os menores para decidir qual deles seria o grande monarca do globo. Mas, como governo mundial de nações nunca esteve no plano do Eterno, esse último domínio ressuscitou de fato, mas por um tempo muitíssimo curto. Babilônia caiu e todos nós caímos com ela para sempre.

ÚLTIMAS PALAVRAS
Agora, estou aqui com vocês nesse lugar de tão tristes recordações para nós todos e termino minha autobiografia com as seguintes palavras.
Não uso chifres, não tenho unhas de fera, não cuspo fogo nem tenho nas mãos aquele garfo gigante, tudo criado por alguns de vocês para assustar e ganhar pessoas para suas ideias. Como vocês sabem, sempre fui uma das mais belas criaturas do universo.
Não exerço mais liderança sobre vocês. Somos todos prisioneiros e cada um de nós agora vive pela lembrança de seus próprios atos.
O meu grande ato foi me rebelar contra o Criador e foi por isso que perdi a liberdade que julgava não conhecer. O mesmo aconteceu com vocês, anjos iguais a mim. Juntos caímos no pecado, juntos caímos do Paraíso e juntos caímos neste abismo.


Quanto a vocês, meus anjos de barro, meus filhos adotivos, o grande ato de vocês foi ouvir meus conselhos mentirosos e não crer em quem tanto amou vocês, quem por vocês deu a própria vida.

Copyright Eimaldo Alves Vieira 

Nenhum comentário:

Postar um comentário